Sem Gritos
Ela gritou. Gritou cem vezes. Gritou
a plenos pulmões. Gritou o mais alto que pôde. Gritou até a garganta sangrar. Ela
queria apenas expurgar toda a dor que sentia. Queria livrar-se da escuridão que
lhe envolve. Gritou porque as lágrimas já não mais bastavam. Porque mesmo
afogada em seus prantos não sentia seu corpo limpo da imundice de seu próprio mundo.
Quem sabe gritando! Quem sabe esvaziando todo o ar de seus pulmões se sentiria
livre. Quem sabe assim expeliria todo o seu tormento: berrando para além do
horizonte!
Porque ela estava exausta de ser
ela mesma. Estava fatigada de sua própria vida. Estava cansada de andar por
este labirinto sem fim. Não suportava mais que sua única companhia fosse sempre
a solidão. Só queria gritar. Vociferar. Berrar. Explodir. Inexistir. E se sua
voz fosse alta o suficiente talvez chegasse a algum lugar e levasse consigo
todo o seu torpor e, quem sabe, ultrapassasse as barreiras da sarjeta onde ela
se encontra.
Ela vive há tanto tempo na lama
que já está acostumada a ser ignorada e pisada e desacreditada. E, afinal, por que
alguém como ela mereceria a sua confiança? Por que você deveria dar crédito a
alguém que vive na escuridão, nas sombras? Ignore-a! Deixe-a para trás como
qualquer um faria e como tantos já fizeram. Ignore sua dor e seus gritos. Ela
mesma não tem a intenção de tirar-lhe do seu caminho. Siga a sua vida, repleta
de promessas vazias e dissimulações. É muito mais fácil pra você, dessa
maneira!
Mas, ao menos, deixe-a gritar. Ou
nem olhe. Ignore! Porque ela pensa que, quando ela grita, sua dor sai junto com
a sua voz! Por isso ela berra tanto. Talvez você nem a notará ou a ouvirá. Porque,
na verdade, em todos cem gritos que ela branda, ela não percebe que, de fato, não
há expurgo. Não há libertação da dor. Não há voz. Não há grito!