domingo, 13 de agosto de 2017

Proseando...

     Chuva

     Ela primeiro escutou o barulho da água que caía do céu e isto a levou até sua janela, no sexto andar. Sentiu, então, o cheiro da chuva que entrava por uma pequena fresta entre os vidros escurecidos. Passava um pouco da meia-noite e, como ela não conseguia dormir, foi sentir as pequenas gotas lhe tocarem o rosto, vindas com o vento frio que adentrava o seu apartamento.
    
    Sempre achara a chuva poética. Gostava de fechar os olhos e deixar-se envolver... Por alguns minutos, tudo se resumia ao maravilhoso êxtase de imaginar as pequenas gotas de água que limpavam a superfície da terra. Quase quis ir até a sacada e deixar-se molhar. Uma lavagem de alma que somente a chuva é capaz de fazer! Um sentimento, entretanto, prendeu-a junto à janela, provavelmente trazido pelas gotas que escorriam no vidro à sua frente e agravado por sua solidão insone: era saudade.
    
     Veio à sua mente - tão assim de súbito - um amor antigo, cheio de encontros, mas que acabou em um desencontro. Um amor de uma vida toda e para toda a vida. Um amor separado pela distância dos corpos e talvez das almas, mas não de corações. Desejou, naquele momento, estar nos braços daquele amor novamente e se sentir amada e aquecida nesta noite chuvosa. Mas isso não seria possível, dessa vez.
      
     Foi inevitável que relembrasse toda a sua trajetória com aquele que foi o seu grande amor. Lembrou do quanto admirava seus olhos verdes, do quanto eles emanavam sabedoria e segurança. No início, ela se sentia pequena quando encarava aqueles olhos, mas eles lhe sorriam com a grande bondade provinda do coração dele. Lembrou-se das mãos dela entrecruzadas nas dele e de como ele a segurava firme levando-a para conhecer o mundo. Lembrou das muitas noites que passavam em claro jogando conversa fora ao som de músicas velhas e risadas novas.
      
      Nem tudo eram flores, claro. Ambos eram muitos geniosos e não teve como não lembrar das brigas homéricas que teve com ele... Lembrou de muitas lágrimas derramadas e de como, depois de um tempo, sentiu-se deixada de lado por outras prioridades na vida dele. Lembrou que ele também sabia ser cruel e chegou a feri-la algumas vezes com palavras bem afiadas que lhe saltavam aos lábios. Por ser escritor, palavras eram a especialidade dele, as afiadas, inclusive. E estas talharam muitas e muitas vezes o coração dela - que ainda carrega as cicatrizes.

     Por tempos ela esteve ao lado dele, um ele que poderia ser duas pessoas distintas: o poeta da mais profunda sensibilidade que acreditava nas pessoas e em um mundo que sempre poderia ser melhor e o disciplinador severo demais e seguro demais de si mesmo, que tudo sabe e não comete erros. Mas, compreendendo que todos nós lidamos com duas, ou até mais, personalidades dentro de nós mesmos, ela sempre tentou entender e lidar com a inconstância dele e, verdade seja dita, nem sempre conseguiu.
    
    Mas do amor que ele sentia por ela, ela nunca teve dúvidas. Tampouco do sentimento que ela própria carregava e dedicava a ele. Isto fazia os dois, depois de qualquer tormenta, reconciliarem-se e passarem novas noites em claro curtindo a lua e as estrelas. Só que, com o tempo, as rachaduras foram se alargando e foi ficando cada vez mais difícil manter a estrutura sólida, pois o relacionamento desmoronava aos poucos e, de trinco e trinco, sucumbiu.
     
     Tudo terminou bem: ele houvera decido seu caminho desde sempre e ela tinha projetos diferentes, e foi inevitável que cada um fosse para o seu lado. Ela não podia negar que desejou com todo o seu coração que ele tivesse escolhido ficar com ela para poder ajudá-la sempre que ela precisasse, evitando que ela se sentisse tão sozinha. Entretanto, há muito ele demonstrava que o rumo dele era outro e o amor que ele sentia por ela não foi suficiente para oferecer o abrigo e a segurança que ela queria e necessitava.
     
     Ela, de certo modo, compreendeu, pois não poderia privar ninguém de seguir os seus sonhos. Ela o amava demais para fazer isso com ele e, independente do quanto seria difícil para ela enfrentar o mundo sozinha, ela entendeu que este seria o destino dela. Findou-se um relacionamento de algumas brigas e de muita cumplicidade, e/ou vice e versa. Sabia que dali em diante não poderia mais esperar pelas músicas que ele colocava para tocar nas manhãs de domingo e nem pelas experiências culinárias malucas que somente ele era capaz de preparar. Estava sozinha aos domingos... estava sozinha ao mundo!
       
      Um trovão rompeu os céus e a tirou de seus devaneios profundos. A chuva lá de fora se intensificara, talvez, pensou ela, para combinar com a tempestade que iniciara dentro dela. Não sentia mágoa ou rancor por ele. Não mais. Só sentia amor e, é claro, saudades. Desejou que ele alcançasse os sonhos dele. Desejou que ele encontrasse a felicidade. E desejou que em alguma outra noite, chuvosa ou não, ele viesse ao encontro dela.
     
      Visualizou novas imagens em sua cabeça. Não mais do passado, quem sabe do futuro… Nessas imagens, ela e ele se abraçariam durante vários minutos. Ela veria seus olhos verdes novamente e eles estariam cheio de histórias para contar. Eles colocariam uma boa música, fariam uma comida improvisada, ela contaria sobre a vida que tem vivido e ele falaria sobre as próprias andanças. Talvez eles chorassem com lembranças e histórias porque são muito chorões, mas, também e de certo, ririam muito e seriam cúmplices novamente.
     
     Foi uma cena boa de ser vista e isto a fez sorrir, mesmo com as lágrimas lhe trespassando o rosto. Olhou por mais uns minutos a chuva carregada de seus cheiros e ventos gélidos. Hoje ela dormiria consciente de que a cidade estava encharcada, assim como o seu coração. O que não teria problemas, foi a chuva que tocou e molhou a sua alma, afinal. Decidira que já era hora de tentar dormir novamente. Sentia a falta dele todos os dias, isto não podia negar e, antes de fechar a janela, que ainda estava ligeiramente aberta, deixou sair pela fresta um quase inaudível, mas certamente verdadeiro, “eu amo você… sempre!”.